Alsace et Bastille

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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Sandra Tavares da Silva - Entre o Douro, Lisboa, Cascais e a quinta dos avós no Ribatejo.

 

 

Bela colheita

por RICARDO J. RODRIGUES. FOTOGRAFIA ADELINO MEIRELES
Ir para os socalcos, colher os cachos, provar os bagos. Depois pisar as uvas, acertar a mistura das castas, sentir o perfume do lagar. Tudo isto fez Sandra Tavares da Silva mudar a agulha da bússola. Abandonou a selecção nacional de voleibol, largou a carreira de modelo internacional e fez-se ao Douro - para criar um vinho de qualidade excepcional. História para beber.
O Vale de Mendiz é metade paraíso, metade inferno. Por um lado, quem sobe a estrada do Pinhão para Alijó não consegue ficar indiferente ao esplendor do Douro Vinhateiro. São anfiteatros encaixados uns nos outros, construídos a suor e picareta, todos em precipício para o rio. A paisagem escadeada atinge a sua beleza maior em Setembro, com os cachos dourados e prontos a colher. Mas, por outro lado, o ar é tão quente que os corpos parecem ferver. «O Douro são oito meses de Inverno e quatro de Inferno», dizem os serranos. Deve ser assim o purgatório: belo e insuportável.
Três da tarde, sol de quarenta graus. Numa das encostas de Vale de Mendiz, a vindima avança. As mulheres - que são vinte - cortam os cachos à tesourada e atiram-nos para dentro de baldes de plástico. As mais velhas vão incentivando as gaiatas - «Ora corta lá o cacho / Ora anda para diante» - numa cantilena que deve ser tão antiga quanto aquelas vinhas. Usam lenços e chapéus na cabeça, camisas leves com decotes que sobem e descem consoante o calor. Depois de encherem o balde, gritam pela caixa, e logo corre um mancebo colina acima, para despejar as uvas num tabuleiro de plástico e correr com ele para a carrinha que os há-de levar à adega. O estranho é que, no meio da azáfama, está uma mulher de calças de ganga e pólo preto. É mais alta do que todos os jornaleiros da vindima, tem cabelos compridos, pose elegante. O seu único trabalho parece ser o de ir provando os bagos adocicados e cobertos de pó.
«Nada dá tanto gozo como a altura das vindimas», diz Sandra Tavares da Silva, enóloga, 39 anos. «Distinguir o sabor das uvas, analisar a qualidade das castas, saber misturá-las para criar um bom vinho. São os meses de trabalho mais árduos, mas também os mais apaixonantes.» Numa outra vida, esta mulher foi modelo, desfilou em Paris e Nova Iorque, destacou-se em concursos de beleza. Também foi atleta de alta competição, jogou na selecção nacional de voleibol. Agora tem a camisa suja de poeira, mãos manchadas de vinho, botas de montanha em vez de saltos altos. «Abandonei uma vida que gostei de experimentar, mas que sempre me pareceu efémera. Hoje estou a construir algo que sinto ser permanente e durável. O vinho, ao contrário do corpo humano, ganha valor com a idade.»
Sandra chegou ao Douro há 12 anos e tem conseguido produzir uma mão-cheia de vinhos notáveis. De todos, o destaque vai para o Pintas, considerado duas vezes pelo Financial Times o melhor vinho do Douro. Oitenta por cento do que é produzido vai para exportação. É um tinto com assinatura dela própria e do marido - Jorge Serôdio Borges - depois de comprarem um pequeno armazém de vinho do Porto em Vale de Mendiz e 2,5 hectares de vinha. Assim nasceu a Wine & Soul, que produz também um porto com o mesmo nome e um branco, o Guru. «O verdadeiro segredo», confessa ela, «é que este vinho nasce de uma única vinha, com mais de oitenta anos. Concentra mais de trinta castas e isso é um tesouro que nos permite fazer este produto notável. Às vezes, os clientes estrangeiros - sobretudo os americanos - pedem-nos para identificarmos que percentagem existe de cada casta. É pura e simplesmente impossível de determinar. O Pintas é único.» Não exactamente: Pintas é também o nome do cão do casal.
Sandra cria outros vinhos. Como o Quinta de Chocapalha, na região de Lisboa, que é propriedade da sua família. Ou o belíssimo Quinta de Manoella, um duriense em vias de se tornar um caso sério de sucesso. Ou o Quinta do Vale Donna Maria, que torna Sandra em elemento feminino dos Douro Boys - nome porque são conhecidos os enólogos de cinco propriedades que têm marcado a modernidade dos tintos da região [ver caixa]. «Faço alguns vinhos, mas não demasiados. Nunca conseguiria ser uma daquelas consultoras que mal visitam as propriedades e produzem cinquenta vinhos por ano. Eu preciso de me sujar, de fazer a poda e provar a uva, de enfiar os braços no lagar. É isso que, na minha opinião, torna esta profissão mágica.»
A cidade e as serras
Cresceu entre Lisboa, Cascais e a quinta dos avós no Ribatejo. O Norte de Portugal era lugar estranho, acima do Mondego as pessoas falavam de outra maneira. Se calhar, diz agora, de uma forma mais genuína - com o coração na boca. «Lembro-me de ter uns 16 anos e ser convocada para um estágio da selecção de vólei. Eu ainda tinha idade de júnior, mas fui chamada à equipa sénior. Éramos apenas duas de Lisboa, tudo o resto era do Norte. Entrava no balneário e não sabia o que era uma cruzeta. O treinador gritava "pincha, Sandra, pincha" e eu não fazia ideia de que ele me estava a mandar saltar. As minhas colegas chamavam-me betinha. Mas não era isso. Eu simplesmente não percebia o que diziam.» O Norte era um país diferente.
Aos 18 anos entrou no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Ao mesmo tempo, começou a desfilar em passerelles. Tinha figura e rosto, bastante naturalidade. «Sempre tentei conciliar os estudos com a profissão de modelo. Demorei alguns anos a formar-me em engenharia agrónoma, mas consegui.» Pelo meio, idas a Nova Iorque e Paris. Desfilou Paco Rabanne, partilhou a passadeira com Naomi Campbell, inaugurou a Moda Lisboa e o Portugal Fashion. Ficou nas cinco primeiras classificadas do Elite Model Look, um concurso internacional de descoberta de novos talentos. «Mas o vestido que mais tive prazer em desfilar foi um José António Tenente. Lembro-me perfeitamente: tinha um corte simples, alças, um tecido muito trabalhado. Era leve - e gosto disso.»
Não se arrepende dos anos de modelo. «Viajei, comprei um carro, tive oportunidade de pagar jantares aos amigos.» Mas também não esquece as agruras de um meio em sobe e desce. «No mundo da moda é muito difícil criar amizades francas. O teu prazo de validade é curto e, por isso, são sete cães a um osso. Roubavam-me sapatos mesmo antes de desfilar, partiam-me os saltos, ou simplesmente começavam a espalhar pelos costureiros a ideia de que eu estava gorda. Aprendi uma regra de ouro: é importante dares-te bem com a aderecista para essas coisas não acontecerem.» Hoje, no Douro, os seus melhores amigos são outros enólogos, produtores de vinhos concorrentes. «Agora faço algo por mim, algo durável, e aprecio ver os outros fazerem o mesmo. Deve ser uma reminiscência dos tempos em que era atleta e jogava em equipa.»
Foi o estágio na Quinta Vale Donna Maria que a trouxe ao Douro, em 1999. Um mestrado em enologia, feito em Itália, ajudou-a a decidir mudar de vida. «Estava cansada das passarelles e desde miúda, quando pisava uva na propriedade dos meus avós, que tinha um fascínio tremendo pelo universo do vinho.» Chegou sem planos para ficar, o objectivo era tornar a Lisboa. Mas então conheceu Jorge Serôdio Borges, um jovem enólogo que, apesar de pertencer a uma velha família vinhateira, tinha ideias frescas para o mercado. «Apaixonei-me, mas resisti, resisti, resisti. Sempre tive uma vivência urbana, não me passava pela cabeça viver aqui. Mas o Jorge foi insistindo e então já não resisti mais. Ainda bem, foi a melhor coisa que me podia ter acontecido.»
Sandra Tavares da Silva vive numa casa simpática do Pinhão, tão inclinada quanto as vinhas do Douro. Pintas, o pointer que deu o nome ao vinho, está velho e ganhou o hábito de passar os dias a atirar uma pedra pela arriba, correr a buscá-la, e atirá-la novamente. Nos primeiros anos iam ao Porto passar os fins-de-semana, sair à noite, dançar. Agora têm três filhos e qualquer noção de festa passa por um jantar com outros produtores, em casa de alguém, a fazer degustações de vinho. A tranquilidade do campo tornou-se benefício inesperado, pesem as desvantagens do isolamento. «Os miúdos têm rio e serra quanto baste para brincar. Preocupa-me apenas o mais velho, que vai este ano entrar para a escola.» Há-de ser ida e retorno diário a Vila Real, quase uma hora de caminho.
Douro, verdadeiramente excepcional
Quando a vindima terminar, quando o vinho tiver amadurecido nos tonéis e estiver pronto para sair para o mercado, há-de começar outra parte dura do trabalho de Sandra: a promoção. «Não basta saber fazer um bom vinho, é preciso escoá-lo, encontrar os nichos certos.» Por isso é que Inverno é sinónimo de correria. Feiras internacionais, contactos com clientes, voltas ao mundo inteirinhas. Entre ela e o marido, revezam-se para não descurar a casa e a vinha. O Douro é, afinal de contas, habitação, paixão e trabalho.
«Esta é uma região única, com um património genético inigualável no que toca a vinhos.» E agora Sandra está na adega, tem um braço enfiado até ao cotovelo dentro do lagar, agarra com a mão o mosto, delicia-se com o cheiro a amoras que o Pintas deste ano liberta. «O Douro é tão peculiar que não há outra região no país onde toda a gente viva do vinho. Socialmente, isso é um caso raro e deveria ser muito mais bem explorado a nível turístico. Há um potencial que não está a ser aproveitado.» Fala de restaurantes que não estão ao nível dos vinhos que a região dá a provar. Da oferta hoteleira fraca. Das enchentes que passam e não param.
Ainda assim, os vinhos do Douro - «quase sem promoção» - conseguem estar na berra. «Somos o novo país do velho mundo, estamos a sobressair e temos boa imprensa a nível internacional. Falta-nos, ainda assim, uma imagem sólida. Se alguém chega a uma garrafeira e encontra dois vinhos, um francês e um português, a vinte euros, escolhe o francês porque ele tem a tal imagem criada.» E a enóloga não encontra justificação para o Douro, que todos os anos produz milagres que se despejam nos copos, não ser mais bem comunicado.
Nos anos de 1990, a Universidade de Trás os Montes e Alto Douro identificou as cinco castas que melhor se adaptam à região: Touriga nacional, Touriga franca, Tinta roriz, Tinta barroca e Tinto cão. «Mas a Touriga nacional, por exemplo, é uma vinha difícil, extremamente sensível na floração. Nem sempre vinga. Não é uma casta penteadinha, é rebelde. Por isso mesmo, há vários produtores que não querem apostar nela.» Muitas vezes, há até vinhas antigas que são arrancadas para dar lugar a castas internacionais, como o Cabernet ou o Syrah, para serem mais fáceis de colocar em mercados estrangeiros. «As castas portuguesas são muito específicas e pouco conhecidas fora do país. São mais difíceis de colocar, sobretudo se não houver uma promoção e educação forte dos públicos.»
Agora é hora de descanso e toda a vindima pára. Cada oliveira é uma bênção feita sombra. Há-de chegar o almoço, um bacalhau com natas feito para jornaleiros, enólogos e engenheiros. Há-de ser regado com Pintas. E, durante o repasto, há-de discutir-se a colheita do ano. Sandra há-de referir com um sorriso que o Verão foi frio, mas as duas semanas que antecederam a colheita fizeram jus ao inferno duriense, um calor que ferve. Melhor era impossível. Depois da sobremesa, Sandra há-de rir-se para Jorge e partir contente para junto das mulheres que andam na apanha, cantando para se animarem umas às outras. «A colheita deste ano vai ser uma das melhores de sempre.»
Vinho com assinatura
Ao longo dos anos não faltam vinhos no currículo de Sandra Tavares da Silva. O Pintas, trabalho conjunto da enóloga e do marido, Jorge Serôdio Borges, há-de sempre ser a estrela da companhia. Nas versões tinto e porto vintage, são um triunfo inventado pelo casal e merecedor do aplauso da crítica internacional. Nos portos, mais duas notas a assinalar: o Quinta Vale Donna Maria Vintage e o Wine and Soul Vintage 10 anos, ambos com excelentes referências. Nos tintos, ainda no Douro, Sandra andou de roda do Quinta de Manoella, do CV Douro e do Casa de Casal de Loivos. Nos brancos, a produção mais recente chama-se Guru, mas também há um VZ Douro que ajudou a cimentar a posição de qualidade da enóloga. Na antiga região da Estremadura, actual Lisboa, Sandra Tavares da Silva rubrica o Quinta de Chocapalha, branco, tinto e reservas, com boa aprovação no mercado nacional.
A girl dos Douro Boys
Quando cinco grandes propriedades decidiram juntar forças para promover os vinhos do Douro, falou-se em dois fenómenos: renovação geracional e revolução dos tintos. Os Douro Boys nasceram da união entre os jovens enólogos da Quinta do Vale Meão, Quinta do Crasto, Quinta Vale Dona Maria, Quinta do Vallado e Niepoort Vinhos. Apostaram nas vinhas antigas para criar alguns dos vinhos tintos mais recentes e mais conceituados do país. Sandra Tavares da Silva, que ainda trabalha na Quinta Vale Dona Maria, é o rosto feminino do grupo. Os Boys - e a girl - perceberam que o arrojo de vender ao mundo não apenas o vinho como toda a aura do Douro seria um bom negócio. Os cabeçalhos nas revistas internacionais da especialidade e o aumento sustentado de exportações parecem dar-lhes razão.

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